
Era um dos
bairros mais degradados da periferia de Lisboa.
Atravessei-o durante alguns anos a pé (encurtava caminho), para
ir para o infantário onde trabalhei .
Os invernos
chuvosos seriam, porventura, os mais duros para ali viver.
Povoado de crianças negras, era um espaço de
lama preta sem mais opções.
Descalças e quase
nuas, descarregavam naquela lama, quem sabe, a falta de comida e afectos que
por força das circunstâncias lhes eram negados.
Aquela lama,
penso eu, preenchia-lhes a vida vazia de tudo! Era a descarga de todas as
faltas!
Era arrepiante
aquele mundo que nem todos conheciam em directo.
A impotência
assaltava-me de cada vez que ali passava!
Um dia, como que
de propósito, entra-me pela sala dentro, uma daquelas crianças que tantas vezes
me impressionara!
Fora admitido,
num daqueles programas sociais.
Chegou em bruto, sem regras, sem disciplina e com modelos errados.
Para esquecer.
Entrou quase nu,
tal como andava no bairro.
Arregacei as mangas.
Procurei lã bem
quentinha e nas horas vagas fiz um camisolão bem aconchegante.
Já pronto lá vou eu
feliz, por ir contribuir para o bem-estar daquele menino do bairro!...
Caquinha!... (seu
nome de guerra)! Lá vem ele chorando, com as suas birras permanentes (a
adaptação foi muito difícil). Mostrei-lhe o que tinha feito para ele e, um
pouco a custo, enfiei-lhe a camisola.
A gritaria
triplicou e foi acompanhada de um protesto que alertou todo o infantário!
«MIJOLA, NÂO, DUCHI!
MIJOLA,
NÂO, DUCHI!...»
Ao mesmo tempo
que a arrancava do corpo e a atirava ao chão.
Concluí que
aquele corpito grande e magro (tinha só três anos), estava domado pelas agruras
invernais!
Não consentia
abafos!...
Fiquei-me pela
boa vontade.
Cresceu, emigrou
e, segundo sei, casou!
Como será hoje
aquele Caquinha que eu tão bem conheci e em quem investi tanto afecto?
BAIRRO! BAIRRO
NEGRO!
BAIRRO NEGRO!
Onde não há pão
nem há sossego!
Abraço.
E oiça aqui a espantosa canção de Zeca Afonso
Sem comentários:
Enviar um comentário