sexta-feira, 27 de março de 2015

Um exemplo a seguir



O papa Francisco é uma figura que não passa despercebida, nem ao mais distraído.
De uma dignidade humana sem precedentes, a sua bondade, simplicidade e amor pelos outros fizeram-me parar para pensar.
O seu despojamento em relação ao poder e à opulência foram uma pedrada no charco.
A forma clara e séria de interpretar Deus tem abanado tudo o que até então foi dito e escrito.
Todos os dias nos presenteia com gestos de proximidade e afecto, tão necessários neste mundo vazio de amor.
O que ele nos tem transmitido com as suas palavras e gestos são pérolas que deveriam ser acolhidas e motivo de reflexão.
Pergunto-me por que demorou tanto tempo, este HOMEM a chegar?
Porque é que, no seio da Igreja, esta semente não tem vingado?
Onde buscou ele estas verdades, a que aparentemente (ou não ), os outros não tiveram acesso?
Por que é que, durante tantos anos, se espalhou o medo e se difundiu um discurso tão duro, tão redutor, obscuro e diferente do que ele nos apresenta hoje?
Para mim, este HOMEM está, sim, ao serviço de Deus, seja Ele quem for, e das pessoas.
Ao serviço dos valores e da verdade sem sofismas.
Assim, sem medo e com grande coragem, ele dirige-se ao Mundo e tenta juntar os cacos que foram deixados ao longo dos séculos.
Tenta mostrar-nos qual o caminho a seguir, para conseguirmos que esse mundo seja melhor.
Só não o ouve quem não quer ou quem se sente bem num mundo esfarrapado e a digladiar-se com guerras e desigualdades.
Num mundo onde o egoísmo e os interesses se sobrepõem à solidariedade, ao humanismo e ao amor verdadeiro.  
Desejo que este HOMEM continue a sua missão, que até há bem pouco tempo eu acharia impossível


Abraço.

sábado, 21 de março de 2015

O SACO




O saco era grande e chegava quase vazio.
Às nove e meia de todas as manhãs, era agarrado pelas «orelhas» e levado a arrastar estrada abaixo, numa correria alegre.
O SACO!
O saco chegava na camioneta da carreira!
Qualquer criança, das muitas que nessa altura havia, disputava a guarda e entrega do saco.
Era quase um crescer da sua vaidadezinha de meninos! Ser portador daquele saco, era uma responsabilidade, pois não se tratava de um saco qualquer!
Aqueles corpitos frágeis e aquelas mãos pequeninas tinham uma missão que não podiam falhar: entregá-lo em mãos seguras no posto do correio.
Era aguardado  com alguma ansiedade. Mulheres, namoradas e claro, os comerciantes da aldeia,desejavam que lá dentro viesse a perspectiva da continuação de uma vida sem percalços.
O que traria hoje o saco?
Só depois de aberto por alguém possuidor da chave, se saberia!
Era uma chavinha pequena mas especial! Era guardada em sítio seguro e só de lá saía no momento certo, manuseada pela pessoa certa!
Penetrava a fechadura, rodava e só depois os segredo ou não, poderiam finalmente ser entregues e lidos.
As boas ou as más notícias, as juras de amor ou as despedidas até mais ver!
Os nomes dos destinatários eram lidos em voz alta:
«Senhora fulana de tal! Menina Tal e Tal»! ...
«E do meu filho, não veio nada»?
«O meu homem já me devia ter mandado o vale»!...
Estávamos no início da primeira debandada de emigrantes que, mensalmente, enviavam o pecúlio que com grandes sacrifícios, conseguiam angariar.
Felizes uns,  outros nem tanto, lá aceitavam a realidade, porque a esperança não podia morrer!
«Devem chegar notícias amanhã», dizia a mulher de lenço preto na cabeça, afastando-se cabisbaixa.
Era assim nos anos sessenta.
Tudo dependia da camioneta da carreira e do que aquele saco trouxesse.
Os interessados esperavam ansiosos e em grupo,a camioneta com o saco do correio.
Era um momento do dia com alguma importância.
Hoje, poucos se lembrarão daquele saco!
O objecto em tempos tão desejado, jaz esquecido e coberto de pó não se sabe onde!
Coisas dos tempos!


Abraço.  

terça-feira, 17 de março de 2015

Para recordar


















Quando me debruço sobre o computador ou quando pego no telemóvel, muitas vezes me lembro de como hoje é tão fácil comunicar!
Para os mais jovens, aqueles que nasceram depois de 1975, devo dizer que nem sempre foi assim!
Os dessa geração nem imaginam como há quarenta, cinquenta e mais anos, era dificil contactar com alguém!
Apenas havia nas aldeias (talvez nem em todas) um telefone público que deveria funcionar das oito às vinte e quatro horas e um posto de correio onde as notícias chegavam uma vez ao dia!
Só para terem  uma ideia, muitas vezes uma carta, ou uma encomenda, demorava(m) dias a chegar de um lado ao outro!
Isto, dentro do país.
Porque, se se tratasse do estrangeiro ou das antigas colónias, poderiam demorar oito ou mais dias.
Quando alguém adoecia ou por qualquer outro motivo precisasse de um médico, passavam horas até se conseguir o contacto com quem viesse em socorro.
A palavra urgência, nessa altura, não tinha qualquer peso.
Tempo! Era preciso dar tempo!
Muitas mortes aconteceram por falta de socorro atempado!
Na minha aldeia, havia um homem bom (por acaso meu tio por afinidade), que, apesar de não ser médico nem enfermeiro, tinha uma grande queda para a medicina.
Era o meu saudoso tio Narciso Nobre!
Era uma espécie de João Semana. Sempre acompanhado pelo prontuário médico, era ele quem chegava primeiro.
Fosse dia ou fosse noite ia, prestava os primeiros socorros e medicava.
Era contactado por toda a aldeia e pelas aldeias vizinhas, por exemplo, a Moita.
Hoje, os meios de comunicação são uma mais-valia – só é pena  é que muitas vezes não sejam utilizados
da melhor forma e para os fins mais correctos.
Hoje, para o bem e para o mal, não há distâncias.
Usem e usufruam bem de todos os meios de comunicação ao vosso alcance!


Abraço. 

quarta-feira, 11 de março de 2015

Bairro, bairro negro

 


Era um dos bairros mais degradados da periferia de Lisboa.
Atravessei-o  durante alguns anos a pé (encurtava caminho), para ir para o infantário onde trabalhei .
Os invernos chuvosos seriam, porventura, os mais duros para ali viver.
 Povoado de crianças negras, era um espaço de lama preta  sem mais opções.
Descalças e quase nuas, descarregavam naquela lama, quem sabe, a falta de comida e afectos que por força das circunstâncias lhes eram negados.
Aquela lama, penso eu, preenchia-lhes a vida vazia de tudo! Era a descarga de todas as faltas!
Era arrepiante aquele mundo que nem todos conheciam em directo.
A impotência assaltava-me de cada vez que ali passava!
Um dia, como que de propósito, entra-me pela sala dentro, uma daquelas crianças que tantas vezes me impressionara!
Fora admitido, num daqueles programas sociais.
Chegou em bruto, sem regras, sem disciplina e com modelos errados.
Para esquecer.
Entrou quase nu, tal como andava no bairro.
Arregacei as mangas.
Era preciso investir naquele ser em todas as vertentes e também no conforto físico.
Procurei lã bem quentinha e nas horas vagas fiz um camisolão bem aconchegante.
Já pronto lá vou eu feliz, por ir contribuir para o bem-estar daquele menino do bairro!...    
Caquinha!... (seu nome de guerra)! Lá vem ele chorando, com as suas birras permanentes (a adaptação foi muito difícil). Mostrei-lhe o que tinha feito para ele e, um pouco a custo, enfiei-lhe a camisola.
A gritaria triplicou e foi acompanhada de um protesto que alertou todo o infantário!
«MIJOLA, NÂO, DUCHI! 
MIJOLA, NÂO, DUCHI!...»
Ao mesmo tempo que a arrancava do corpo e a atirava ao chão.
Concluí que aquele corpito grande e magro (tinha só três anos), estava domado pelas agruras invernais!
Não consentia abafos!...
Fiquei-me pela boa vontade.
Cresceu, emigrou e, segundo sei, casou!
Como será hoje aquele Caquinha que eu tão bem conheci e em quem investi tanto afecto?
BAIRRO! BAIRRO NEGRO!
BAIRRO NEGRO!
Onde não há pão nem há sossego!


Abraço.

E oiça aqui a espantosa canção de Zeca Afonso

domingo, 8 de março de 2015

No Dia Internacional da Mulher para todas as Mulheres


Calçada de Carriche

Luísa sobe, 
sobe a calçada, 
sobe e não pode 
que vai cansada. 
Sobe, Luísa, 
Luísa, sobe, 
sobe que sobe 
sobe a calçada. 

Saiu de casa 
de madrugada; 
regressa a casa 
é já noite fechada. 
Na mão grosseira, 
de pele queimada, 
leva a lancheira 
desengonçada. 
Anda, Luísa, 
Luísa, sobe, 
sobe que sobe, 
sobe a calçada. 

Luísa é nova, 
desenxovalhada, 
tem perna gorda, 
bem torneada. 
Ferve-lhe o sangue 
de afogueada; 
saltam-lhe os peitos 
na caminhada. 
Anda, Luísa. 
Luísa, sobe, 
sobe que sobe, 
sobe a calçada. 

Passam magalas, 
rapaziada, 
palpam-lhe as coxas, 
não dá por nada. 
Anda, Luísa, 
Luísa, sobe, 
sobe que sobe, 
sobe a calçada. 

Chegou a casa 
não disse nada. 
Pegou na filha, 
deu-lhe a mamada; 
bebeu da sopa 
numa golada; 
lavou a loiça, 
varreu a escada; 
deu jeito à casa 
desarranjada; 
coseu a roupa 
já remendada; 
despiu-se à pressa, 
desinteressada; 
caiu na cama 
de uma assentada; 
chegou o homem, 
viu-a deitada; 
serviu-se dela, 
não deu por nada. 
Anda, Luísa. 
Luísa, sobe, 
sobe que sobe, 
sobe a calçada. 

Na manhã débil, 
sem alvorada, 
salta da cama, 
desembestada; 
puxa da filha, 
dá-lhe a mamada; 
veste-se à pressa, 
desengonçada; 
anda, ciranda, 
desaustinada; 
range o soalho 
a cada passada; 
salta para a rua, 
corre açodada, 
galga o passeio, 
desce a calçada, 
desce a calçada, 
chega à oficina 
à hora marcada, 
puxa que puxa, 
larga que larga, 
puxa que puxa, 
larga que larga, 
puxa que puxa, 
larga que larga, 
puxa que puxa, 
larga que larga; 
toca a sineta 
na hora aprazada, 
corre à cantina, 
volta à toada, 
puxa que puxa, 
larga que larga, 
puxa que puxa, 
larga que larga, 
puxa que puxa, 
larga que larga. 
Regressa a casa 
é já noite fechada. 
Luísa arqueja 
pela calçada. 
Anda, Luísa, 
Luísa, sobe, 
sobe que sobe, 
sobe a calçada, 
sobe que sobe, 
sobe a calçada, 
sobe que sobe, 
sobe a calçada. 
Anda, Luísa, 
Luísa, sobe, 
sobe que sobe, 
sobe a calçada. 

António Gedeão, in 'Teatro do Mundo' 

sexta-feira, 6 de março de 2015

Violência doméstica. Porquê?





Sempre, ao longo dos tempos, ouvimos falar de homens que agrediam as suas mulheres.
Nunca como agora se ouviram tantas estórias tão violentas!
Haverá um porquê para que alguém se atreva a desferir cobardemente golpes de faca, tiros, pontapés e outros «mimos» semelhantes em alguém frágil e indefeso?
Haverá algo que justifique procedimentos tão primatas e falhos de civismo?
Que argumentos, então, para esta vaga de violência que se vem praticando contra as mulheres?
Quem ou o quê poderá dar orígem a estes atos tão condenáveis?
A sociedade desumanizada, insensível e desprovida de condições de uma vida dígna?
A falta de emprego, a insegurança, a dignidade ferida, o orgulho amordaçado, a humilhação de não ter como responder aos encargos assumidos?
Põe-se então uma questão.
É só o homem o atingido por esta situação? Por onde anda a mulher enquanto tudo isto acontece?
Será que está de férias?
Será que não se dá conta de que os filhos sofrem com falta do básico para sobreviver?
Será que não tem orgulho nem dignidade?
Nada justifica nem desculpa as atitudes de brutaldade do homem!
A mulher é tão atingida quanto ele e esse facto não pode ser omitido.
Nada desculpa esta brutalidade, esta falta de humanismo.

Toda a brutaldade é condenável!