quarta-feira, 11 de março de 2015

Bairro, bairro negro

 


Era um dos bairros mais degradados da periferia de Lisboa.
Atravessei-o  durante alguns anos a pé (encurtava caminho), para ir para o infantário onde trabalhei .
Os invernos chuvosos seriam, porventura, os mais duros para ali viver.
 Povoado de crianças negras, era um espaço de lama preta  sem mais opções.
Descalças e quase nuas, descarregavam naquela lama, quem sabe, a falta de comida e afectos que por força das circunstâncias lhes eram negados.
Aquela lama, penso eu, preenchia-lhes a vida vazia de tudo! Era a descarga de todas as faltas!
Era arrepiante aquele mundo que nem todos conheciam em directo.
A impotência assaltava-me de cada vez que ali passava!
Um dia, como que de propósito, entra-me pela sala dentro, uma daquelas crianças que tantas vezes me impressionara!
Fora admitido, num daqueles programas sociais.
Chegou em bruto, sem regras, sem disciplina e com modelos errados.
Para esquecer.
Entrou quase nu, tal como andava no bairro.
Arregacei as mangas.
Era preciso investir naquele ser em todas as vertentes e também no conforto físico.
Procurei lã bem quentinha e nas horas vagas fiz um camisolão bem aconchegante.
Já pronto lá vou eu feliz, por ir contribuir para o bem-estar daquele menino do bairro!...    
Caquinha!... (seu nome de guerra)! Lá vem ele chorando, com as suas birras permanentes (a adaptação foi muito difícil). Mostrei-lhe o que tinha feito para ele e, um pouco a custo, enfiei-lhe a camisola.
A gritaria triplicou e foi acompanhada de um protesto que alertou todo o infantário!
«MIJOLA, NÂO, DUCHI! 
MIJOLA, NÂO, DUCHI!...»
Ao mesmo tempo que a arrancava do corpo e a atirava ao chão.
Concluí que aquele corpito grande e magro (tinha só três anos), estava domado pelas agruras invernais!
Não consentia abafos!...
Fiquei-me pela boa vontade.
Cresceu, emigrou e, segundo sei, casou!
Como será hoje aquele Caquinha que eu tão bem conheci e em quem investi tanto afecto?
BAIRRO! BAIRRO NEGRO!
BAIRRO NEGRO!
Onde não há pão nem há sossego!


Abraço.

E oiça aqui a espantosa canção de Zeca Afonso

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