domingo, 27 de fevereiro de 2011

Tabus

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Todos os temos.
Existem, como sabemos, na política.
Onde usam e abusam deles.
Na sociedade, complicam a vida e muitas vezes as relações.
Falta-nos coragem para os enfrentar e resolvemos não falar deles.
Ocultamo-los.
Todos nós, em geral, vivemos com eles.
Para os disfarçar fazem-se jogos de faz-de-conta.
Provocam-se expectativas.
Fingem-se vidas.
Tudo isto porquê?
Às vezes porque é conveniente.
Outras, por falta de coragem para aceitar situações que nos parecem anómalas.
Ou podem parecer aos outros.
Outras, porque não nos queremos expor à apreciação externa, que pode ser de crítica negativa.
Outras, e ainda mais provável, porque não nos aceitamos, nem aceitamos os outros como são na realidade.
O tabu, na minha modesta opinião, é o resultado do nosso orgulho, da nossa
falta de modéstia.
Do facto de acharmos que tudo, em nós e nos nossos, tem que ser perfeito.
Porque estamos demasiado dependentes de opiniões externas.
Porque escondemos, quando o que precisávamos era de falar do que nos preocupa e às vezes nos atormenta.
A falta de amizades e relações verdadeiras pode também ser um entrave.
Assim sendo, lá temos que ir vivendo com tabus de toda a espécie.
Será sempre assim, porque já assim era antes.

Abraço.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Ui, tantos monstros!...












A vida é povoada de monstros.
Há cabeças que os têm como inquilinos permanentes.
Companheiros de jornada que aterrorizam e atormentam.
Há muitos por aí.
No governo, ocupam muitos espaços em cabecinhas vazias de ideias.
Basta ver o que nos põem à frente do nariz.
A descida dos salários.
Os impostos por tudo e por nada.
O desemprego.
A angústia de não ter como pagar as dívidas que se vão acumulando por via disso.
A insegurança.
O medo do futuro.
Os jovens envelhecendo em casa dos pais, porque não têm como adquirir a sua própria casa.
Então isto não é obra de monstros?
Nos empregos, de quem os tem: temos o monstro do chefe, que por vezes só tem o nome e o ordenado.
Que puxa dos galõezitos e descarrega nos subordinados as frustrações e raivas que traz de casa.
Que sente a impotência de, quantas vezes, se sentir ultrapassado.
Que abusa do pequeno poder, para se afirmar, coitado!
Pequenos monstros encapotados é o que há para aí.
Nas famílias.
Verdadeiros déspotas que traem.
Que agridem.
Que violam e, impunes, passeiam-se por aí, como se de gente se tratasse.
Na sociedade: a falta de regras de boa educação e civismo.
Anormais que provocam e se descontrolam.
Que agem por instinto como se a inteligência não lhes tivesse calhado em sorte.
Que puxam por armas e atiram sem dó: monstros em forma de gente.
Que assustam.
Que tiram o sono.
Manipuladores.
Difíceis de dominar, esses monstros!...
A vida é feita deles.
Ela própria, às vezes, é um monstro.

Abraço.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Regresso e adaptação












O regresso foi desejado.
Embora fosse obrigada pela força das circunstâncias a deixar o meu marido em Luanda por mais algum tempo, era o fim da odisseia.
Em princípio, já nada podia acontecer de mau.
O pior foi voltar e retomar a vida que tinha ficado em suspenso.
Era tudo tão diferente!...
Comecei por sentir o clima.
Durante dois anos, transpirei sempre dia e noite.
Andei de pé ao léu.
Chinelos de enfiar no dedo, ou umas sandálias tipo soca.
Assim, o mais arejado possível.
Nunca os meus pés tinham tido tanta liberdade.
Quando cheguei era Julho.
Toda a gente, cá, andava feliz com o calor que chegava.
Eu, cheia de frio.
Calçar sapatos normais era história de ficção.
Todos me apertavam e me feriam os pés.
Foi muito complicado o retomar das situações normais do dia a dia.
Tudo era diferente.
Era a minha terra, era a minha gente – mas o discurso, as ideias, o registo, estava tudo a anos-luz.
O entusiasmo com o vinte e cinco de Abril não existia.
Alguma coisa que se falava, era com total desconhecimento do objectivo para que foi feito.
Nas mentalidades acanhadas da época não havia espaço para alcançar o sentido de tamanho passo.
Tinham sido quarenta e oito anos de ditadura e obscurantismo.
Mas para quem estava por dentro, foi difícil travar o entusiasmo alojado no peito.
Não havia ninguém com quem partilhar.
Apenas nas cartas que demoravam oito dias ou mais, se podia desabafar um pouco.
Desabafos sofridos de quem sentia pena por tamanho desconhecimento.
Revolta, por se ter deixado chegar um povo, àquele estado de desinteresse e ausência de
capacidade para compreender.
As atrocidades que se diziam!
E as que se pensavam!...
Para mim, foi muito complicada esta situação.
Calei muito e engoli muitos sapos vivos.
Ainda não tinha o traquejo que tenho hoje.
Ainda tinha muito sangue na guelra.
Era, e ainda sou, uma idealista!...
Das puras, só pensava que podia mudar o mundo.
Nada mais.

Abraço

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Arrumei o «sótão»
















Se, antes de ter escrito sobre o assunto guerra, me tivessem perguntado se esse tema estava arquivado, eu, assim de uma forma ligeira, era capaz de dizer que… já foi há tanto tempo!...
A verdade é que apesar de já ter sido há muito tempo, estava tudo arquivado.
Arquivado mas muito bem conservado.
Diria que estava mais ou menos congelado.
Um congelamento muito bem executado.
Só aconteceu uma coisa: estava tudo num canto, bem lá no fundo.
Deu trabalho a remover mas, logo que remexido, foi saindo: devagar às vezes; outras quase mais rápido que o pensamento.
Posso dizer que houve momentos em que doeu como era inevitável, mas apesar disso, valeu a pena.
O monstro foi agarrado pelos cornos.
Tratado como merecia.
Foi uma pega necessária.
Eu própria me admirei com tanto pormenor arquivado.
Com a nitidez, com a limpidez do filme.
Como se tivesse sido ontem.
Como se não houvessem passado tantos anos.
Grande máquina o nosso cérebro, ou…grande trauma?
As duas coisa certamente.
Foi bom falar de tudo por que passámos.
É claro que não foi o fim, mas deu para rearrumar tudo de uma forma organizada.
O passado não se apaga.
Faz parte de nós, é a nossa vida, é o nosso ontem.
E nós orgulhamo-nos dele.

Abraço.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Férias dois












Fomos mais uma vez de férias, mas desta vez para Carmona, agora Uíge.
Viajámos de jipe até Cabinda como de costume, em Cabinda apanhámos um avião da TAAG (Transportes Aéreos de Angola) até Luanda. Aí apanhámos um avião da tropa, o Nord Atlas na gíria militar, mais conhecido por «Barriga de Ginguba».
A viagem foi oferta, mas as condições daquele transporte, ainda hoje me fazem rir.
Quando lá entrei não me ri, não: fiquei aterrada.
Olhei à minha volta e o que vi foi um espaço com aspecto frio, desumanizado e sem condições para, fosse quem fosse, voar.
Aquilo parecia um galinheiro enorme, um transporte de mercadorias (carne para abate), com uns bancos de pau corridos e uns cintos de segurança.
Do mal, o menos – pensei.
Havia cintos.
Quase me negava a fazer a viagem. Não tinha sido preparada para aquilo.
Foi-me dito logo.
«Não têm aspecto, mas são seguros e os pilotos são os melhores e com muita preparação e treino».
Acalmei.
Quando depois de instalados (éramos só nós dois, dois militares e o piloto), fizemos uma descolagem perfeita e sem qualquer perturbação.
Foi o máximo, aquela aventura.
Eu só tinha vontade de rir. Já me tinham acontecido muitas situações que não esperava, mas aquela foi de mais.
Aquele avião fazia tanto, tanto barulho, que só por gestos é que se podia comunicar.
Fomos uma hora e meia, mais ou menos, sem conseguir dialogar.
Quando me levantei, tinha as costas doridas, tal era a comodidade daquele transporte.
Era assim, «confortável e tranquilamente instalados», que viajavam os nossos militares em serviço.
Coitados. Aquilo era um desabrigo e tanto.
Quando aterrassem e tivessem que enfrentar o «inimigo», penso que nem ouviriam as bazucadas vindas do outro lado.
A aterragem nem se sentiu.
Não fiquei com medo da próxima viagem.
Parabéns à Força Aérea, pelos profissionais com aquele brio e preparação.   
Fomos para casa de uns padrinhos meus, que estavam lá há bastantes anos.
Eles sim, eram colonos.
Foram à procura de uma vida melhor e tudo indicava que tinham conseguido.
Ela era professora, ele, funcionário numa qualquer repartição do Estado.
Estavam perfeitamente entrosados naquela vida e naquela mentalidade de seres superiores, que reinava entre os colonos.
Não foi surpresa.
Tudo estava preparado para que fosse assim.
O coitado do indígena, só servia para obedecer, ser humilhado e, quantas vezes, difamado.
Foram dias bons, porque fomos muito bem tratados, mas com momentos constrangedores, o que andávamos a combater (a fobia à cor preta) estava ali bem debaixo dos nossos olhos.
Acho que nem se davam conta, aquilo era uma atitude normal, interiorizada por anos e anos de cultura incutida erradamente.
Nunca esquecerei aquelas férias.
O regresso não custou nada.
Mais uma lição de vida.

Abraço    

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

As férias













No fim de um longo ano de tropa, tivemos o privilégio de poder vir de férias à nossa terra.
Grande alegria.
Só havia uma sombra no horizonte.
Ter que voltar para lá.
Sofrer por antecipação.
Contar os dias, as horas, os minutos…
Bom, mas já era bom poder matar saudades, poder pensar, poder caminhar e poder conversar, fora do espaço de guerra.
Quando sobrevoámos Lisboa, foi uma sensação tão boa, tão indescritível, que foi impossível travar a emoção.
Tínhamos a família à espera que, feliz, nos levou até ás nossas origens.
Foi uma alegria imensa.
Houve no entanto uma coisa que provocou em mim estranheza.
A aldeia não me pareceu a mesma, era uma coisinha insignificante, atarracada. 
A minha aldeia, aquela a que tão ansiosamente desejei voltar, a meus olhos tinha encolhido.
Aquela aldeia não era a que eu guardava ciosamente na minha memória!
Era feita de um casario minúsculo, atarracado, e de pessoas que falavam uma linguagem a que já não estava habituada.
Parei para pensar e recentrei-me.
Estava numa escala diferente.
Tinha-me perdido das pessoas com quem me criei, tinha perdido a noção do espaço, tal era a distância, tal era a falta de contacto, tal era a concentração na tarefa que me levou àquelas terras.
Não vi nem ouvi ninguém de lá, durante aqueles trezentos e sessenta dias.
Não havia telemóveis nem internet, nem skype!...
Não havia qualquer meio de comunicação, a não ser os da tropa.
Só as cartas que demoravam bastante a chegar, e quando chegavam já as novidades eram velhas.
O discurso a que estava habituada não tinha nada a ver com a linguagem que, com muita amizade, as pessoas me dirigiam.
Eu estive muito longe fisicamente, embora sentisse muito a falta de tudo aquilo a que estava habituada, o meu cérebro não fez a transferência.
Penalizei-me por isso.
Achei que fui injusta.
Só ao fim de três ou quatro dias, é que me situei, e gozei aquele convívio a que estava habituada e de que sempre gostei tanto.
A vida, às vezes, faz de nós aquilo que não queremos ser.
O regresso doeu outra vez, mas com uma diferença: já caminhávamos para a última etapa, já regressávamos para um sítio onde nos esperavam com amizade e ansiosos por notícias fresquinhas.
Apesar de tudo, foi diferente ter que voltar lá.

Abraço.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O Luís
















Pouco tempo depois de chegarmos, travámos conhecimento com aquela criança desprotegida, de olhar triste e inseguro que era o Luís – ele ia a minha casa pedir alguma coisa para comer.
Tinha doze anos - como o rapaz cabinda da foto.
Como o meu marido começou a dar aulas na escola local, achámos que seria uma boa oportunidade para o ajudar.
Encarregámo-nos não só da sua educação, da alimentação, com também das roupas, dos livros e da sua higiene.
Todos os dias o Luís tomava o seu banho de mangueira na minha varanda e vestia roupa limpa.
Comia as refeições sentado connosco à nossa mesa.
Comia dos mesmos alimentos que nós (e só refiro este facto porque havia quem lhes – aos indígenas locais – desse as peles e a gordura que tirava à carne para confeccionar a sua própria comida).
Andava cheiroso e notava-se que estava vaidoso.
Alimentava-se bem e estava feliz, caminhava para a escola com entusiasmo.
Naqueles dois anos, deu gozo ver o Luís crescer e ganhar hábitos de higiene, boas maneiras e ficar um menino bem-educado.
Achava imensa graça quando eu, em pânico, fugia dos morcegos que à noite me entravam pela casa dentro.
«Senhora, não tem medo, eles não fazem mal». Corria a proteger-me e eu… já enfiada na casa de banho de porta fechada.
Só saía quando ele me dizia que «ele (o morcego), já foi embora, pode vir».
Era um bom menino o Luís.
Tive pena quando viemos embora e o deixámos entregue ao destino.
De vez em quando falamos dele e perguntamo-nos se terá escapado àquela guerra civil que se seguiu à nossa saída.
Se conseguiu, hoje será um homem de quase 50 anos, com filhos e, por certo, ainda não nos esqueceu.
Como já tenho aqui dito, estes factos foram uma forma de não dar de todo por mal
empregue tudo o que se passou naquele cenário de guerra.

Abraço.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Quartel do Bata Sano












De vez em quando, para quebrar um pouco a monotonia, ia passar o dia ao Bata Sano (quartel). Gostava de estar lá logo de manhã, para ouvir o toque da alvorada, para ver o içar da bandeira, e ver os militares na parada a fazerem ordem unida.
Era muito engraçado. Todo aquele ritual era novo para mim.
Eram gestos e movimentos elegantes, que, se não fossem executados num cenário de guerra, seria ainda mais agradável vê-los.
Mas o que me chamou logo a atenção foram dois elementos que mal soava o toque de reunir, se apresentavam.
Eram os primeiros a aparecer.
Perfilados, ficavam junto aos militares e aguardavam ordens, disciplinadamente.
Eram esses elementos: uma cabra e um cão.
Dois amigos inseparáveis.
Logo que começava a marcha, os dois um atrás do outro, alinhavam ao lado do grupo e marchavam ao ritmo imposto.
Era muito engraçado, pareciam animais de circo.
Eram as mascotes e todos gostavam deles.
No meio daquilo tudo tão desagradável, havia dois «palhacinhos» dispostos a animar a malta, e «com o sentido do dever».
Era divertida aquela cena.
O resto do dia era passado a conversar e a tentar enganar o tempo.
Era preciso que passasse depressa...
Tudo era novo para mim, gostava de observar aquela vida tão à parte.
Os militares, coitados, é que tinham uma vida sem objectivos, aquela de que gostavam e queriam, estava longe e demorava a chegar.
Tinham-na deixado pendurada no tempo, expectantes em relação ao futuro.
A espera era dura de mais.
Um dia, estava o meu marido de oficial de dia, chega um soldado a correr a chamá-lo.
Um outro soldado do grupo dele, tinha-se sublevado contra um sargento de carreira, que era sádico e adorava fazer a vida negra aos que estavam debaixo da sua alçada.
Os castigos por nada, eram o seu forte.
Já era conhecido por isso.
Dessa vez ia indo desta para melhor.
O soldado estava com a G3 apontada para ele e quem o travou foi a intervenção do meu marido, pois os que estavam presentes não o conseguiam demover.
O sargento estarrecido, acho que respirou de alívio.
Era o resultado que ele conseguia, pela forma prepotente e desumanizada de se relacionar com eles.
Um ódio de morte.
Era frustrante para ele, ver no fim do dia rasgar as participações contra os soldados, que apresentava ao meu marido.
Castigar e mal tratar, não era o objectivo de nenhum dos milicianos.
Já bastava a situação de fragilidade em que se encontravam.

Abraço

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Ainda os convívios














Depois das osgas instaladas na nossa casa e antes de eu ter algum treino, aconteceu-me várias vezes ir à despensa buscar açúcar ou qualquer outra coisa e… ouvir os nossos amigos a rir à gargalhada com os gritos que eu dava, ao pegar na lata.
Ia ao escuro, agarrava a lata, mais a osga atrelada a ela.
Era um susto de morrer, lá ia pelos ares a lata, mais o ingrediente que tinha dentro.
Gozavam muito comigo os valentões da guerra!
Tive que me fazer esperta e não pegar em nada, antes de ver se estava livre de passageiros ou não.
Outros visitantes permanentes eram os mosquitos.
Por sorte (em alguma coisa tinha que a ter), acho que não lhes agradava o sabor do meu sangue: picavam, mas não deixavam marcas.
Havia imensos amigos e amigas, que tinham as pernas e os braços numa autêntica chaga.
Chegavam a inchar e fazer infecções.
Eram uma praga de respeito para quem não os tolerava.
Depois havia as formigas que não se faziam anunciar.
Apareciam de repente aos milhões, enormes, castanhas, em massa.
Até se ouvia o ruído que faziam ao deslocar-se. Uzz…uzz…uzz.
Anunciavam chuva e trovoada, procuravam protecção.
Ainda nos apanharam uma vez desprevenidos, mas logo alguém experiente ensinou como evitar: sal grosso, muito, à volta da casa.
Assim elas, ao aproximarem-se, cheiravam o sal e seguiam outro rumo.
Remédio santo.
Nunca mais se acabou lá em casa o saco enorme de sal.
Também havia coisas que me davam algum gozo e me deliciavam.
Mesmo em frente da nossa casa numas árvores enormes, havia alguns casais de esquilos, que logo de manhã ao sair da cama, me «roubavam» algum tempo a observá-los.
Eram uns animais deliciosos, muito divertidos que se movimentavam rápido de uma árvore para a outra, numa azáfama permanente, e conscientes das suas tarefas.
Roíam, roíam, saltavam, dando mostras de grande alegria e bem-estar.
Animais simpáticos aqueles.
Uma coisa que nunca vi e vivia apavorada com medo que me aparecesse, foram cobras e lagartos.
Parece impossível, mas aqueles répteis nunca apareceram por ali.
E se havia sítio onde se escondessem!
Já no quartel, encontraram um dia na casa das armas, uma jibóia enorme, que tiveram que matar a tiro.
Esteve na parada do quartel exposta para todos verem, eu também a vi.
Era uma espécie de troféu: 8 metros de comprimento.
O medo e o respeito por tudo o que poderia acontecer lá, era tanto que a poucos metros da nossa casa passava o rio Luali, e nunca descemos aquele caminho fiote (picada), para o visitar.
Um dia, logo no início, alguém local disse, que era frequente aparecerem por ali uns crocodilos.
Remédio santo: rio Luali, nunca.
Fiquei só curiosa...

Abraço.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Convívios dois
















Durante todo o tempo em que estivemos em Buco Zau, fomos sujeitos a um tratamento de quinino para menorizar os efeitos do paludismo.
Eram uns comprimidos alongados, escuros, que deixaram também as suas marcas no organismo, ao nível da saúde.
Ainda assim, fui presenteada por três vezes, com esse «pitéu» (paludismo).
Provoca um incómodo tal que, durante uns três a quatro dias, fica-se prostrada, com febres altas e com dores em todo o corpo, principalmente ao nível da nuca, e com muitos arrepios de frio.
É impossível descrever.
Pois foi numa situação dessas, em que tive por companhia as minhas amigas osgas, que me aconteceu aquilo que francamente não previ.
Estava eu imobilizada, sem capacidade nem vontade de me mexer nem que me mexessem, quando, de repente, senti na minha perna esquerda qualquer coisa fria a mexer.
Instintivamente, com calma e só movimentando o braço, fui tocar na perna.
Logo que pus a mão, encontrei uma coisa mole e viscosa que, mesmo sem força e com
um febrão, me fez dar um salto da cama.
Estarrecida, larguei o que apanhei.
Era uma osga bem nutrida, gorda e reluzente.
Não sei onde fui buscar tanta força, só sei que fui à cozinha buscar uma vassoura, dei tantas na osga – que, não sei porquê, não ofereceu resistência e morreu.
Exausta, deitei-me e continuei prostrada e a tremer por todo o lado, de frio, e de medo.
Como é do conhecimento geral, os répteis nem são sociáveis.
O que aconteceu é que o animal deve ter sofrido alguma doença súbita. Será que foi paludismo em último grau?
Se calhar, o convívio connosco não lhe fez bem.
Este episódio fez-me ter ainda maior asco destes bichos, mas fui obrigada a conviver com eles até ao fim da comissão.
Depois de melhorar, racionalizei a situação e parei de me imaginar coberta de osgas por todo o corpo.
A África teve destas coisas.
Endureceu-me, tornou-me mais forte e sem medos de maior.
Foi uma espécie de vacina vitalícia.
Do mal, o menos.

Abraço.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Episódios












Este tema (Angola / Cabinda) nunca será esgotado.
É demasiado rico de episódios.
Variadíssimos.
E alguns, embora com o perigo a espreitar, engraçados.
Uma vez por outra, havia a necessidade de ir à civilização.
A mais próxima naquele caso, era a cidade de Cabinda – a capital do enclave.
Como ninguém tinha carro, e mesmo que tivesse podia ser um risco, aproveitávamos a boleia dos carros da tropa.
Lembro-me que viajei de jipe, de berlliet e penso que até de unimogue.
Íamos comprar coisas para casa (electrodomésticos) desde ferro eléctrico a som, frigorífico ou outras coisas mesmo necessárias: o indispensável.
Numa dessas vezes, íamos de jipe quando, de repente, vimos ao longe, vindo da floresta, qualquer coisa em movimento.
O motorista abrandou, foi caminhando devagar e vimos aquilo que era impensável.
Três gorilas que pelo tamanho e comportamento, seriam um casal e um filhote.
Que cena digna de National Geographic.
Os três, com um ar imponente, erectos, olharam-nos com indiferença e, calmos, seguros e sem pressa, de mãos dadas por ordem segundo a altura, foram atravessando a estrada, sem demonstrarem o mais pequeno incómodo com a nossa presença.
Ficámos parados, em silêncio absoluto, até vê-los desaparecer na floresta cerrada.
Durante aquele momento, esquecemos tudo.
Pareceu-nos uma cena irreal.
Continuámos a viagem, sem outro assunto que não fosse aquela visão.
Esse foi um episódio agradável, que me proporcionou um momento bonito e de uma ternura indescritível. Uma lição de afecto, uma imagem de família coesa e unida.
Recordálo-hei sempre.
Há mais.
Tinha comigo em casa, duas vezes por semana, uma moça negra ainda jovem, que me ajudava nas tarefas mais difíceis.
Tinha uma bebé pequenina (sete, oito meses) que levava sempre às costas.
Aceitei sem qualquer problema a bebé, que muitas vezes dormiu serenamente na nossa cama.
Esta situação durou toda a comissão e criaram-se laços de afecto, apesar de ela não dizer muita coisa em português.
A Regina, assim se chamava, aparece-me um dia com a sua Maria Rosa muito colada a si e estendendo a mão em concha para mim, entregou-me um ovo minúsculo de galinha «cócó», galinha da Índia - que eles tinham lá muito nas sanzalas. 
O ovinho estava ainda quente do contacto da sua mão.
E disse-me:
- De Mari Rose, per minh’ sinhore.
Fiquei emocionada com o gesto.
Foi uma atitude de reconhecimento que me tocou.
Penso que me levou o que tinha de melhor na sua pequena palhota.
Provavelmente até lhe fez falta.
Este gesto foi de gratidão.
Ela estava reconhecida pela forma como era recebida – não só ela como a filha.
Também me lembro de um dia me ter presenteado com um cozinhado de peixe seco. Levou-o num tacho pequeno.
Ela achou que era uma comida de que eu iria gostar.
Aceitei por delicadeza, mas não consegui provar. 
Claro que nunca lhe disse.
Peixe seco.
Nunca suportei aquele cheiro.
Bonitos gestos de reconhecimento, de uma pessoa nascida sem qualquer preparação, e agindo apenas ao sabor do instinto.
Lições de vida que me deixaram mais rica…

Abraço.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Dois anos (marcas)












Guerra colonial. Durante todo este tempo, raramente conversei sobre o assunto.
Apenas pequenos apontamentos sem grande relevo ou importância.
Apesar disso, este tema teimava em aparecer.
Achei que seria bom pô-lo cá fora, tentar exorcizá-lo.
A verdade é que puxei por um fiozinho, e o novelo desenrolou-se.
E estava tudo tão presente tão presente, que pareceu que foi ontem.
Doeu um pouco, todas as recordações estavam vivas, tão nítidas, que mexeram um pouco comigo.
O que fiz foi porque eu própria precisei de enfrentar dentro de mim aquele período de emoções fortes e medos nunca sonhados.
Foi também para dar a conhecer aquilo que vai caindo no esquecimento.
Aquilo de que não se fala e que devia fazer parte dos compêndios escolares, porque é história.
Depois, e em último lugar, porque acho que o papel das mulheres dos combatentes foi sempre menorizado, quase esquecido.
Eu sei por experiência própria que eles sofreram mais que ninguém, que andaram em directo e ao vivo com o corpo às balas.
Que foram eles as maiores vítimas daquela chacina inútil.
Que eram eles que tinham que enfrentar as situações mais difíceis.
Mas e nós?
A renúncia a tudo, o deixar a família destroçada.
Trocar o país onde nascemos e onde nos sentíamos bem pelo desconhecido.
Adaptarmo-nos a uma civilização que não tinha nada a ver connosco.
Aguentar um clima muito difícil e quase angustiante.
Enfrentarmos o perigo.
Corrermos risco de vida.
E as que ficaram?
A dor da separação.
A agonia da dúvida.
O medo permanente de uma má notícia.
O correio que tardava.
O desespero da espera que se transformava num pesadelo.
Tenho escrito de uma forma apaixonada e sempre com a preocupação de ser verdadeira.
Numa situação destas, nunca se me pôs sequer a hipótese, de «romancear» ou dizer inverdades.
Tenho descrito a situação exactamente como a vivi, como a senti e baseada em alguns relatos sobre situações vividas.
A verdade não é a mesma para todos.
Cada um sentiu as coisas a seu modo, como é natural.
A minha visão terá decerto alguma imprecisão.
Eu não estava nos cenários da guerra.
Sei que no meio daquela injustiça toda, fui uma privilegiada.
Não fui eu que fiz as leis da tropa, simplesmente eu era casada com um alferes miliciano, que tinha alguns direitos (casamento que, felizmente, continua de pé).
Lamentei sempre que essas leis não fossem extensivas.
Temos que continuar a lutar por um mundo onde as diferenças não existam.
Abraço.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Sustos - continuação














Como a situação do ataque ao quartel foi considerada grave, o segundo comandante, em reunião, achou que era preciso assegurar a protecção à aldeia (Buco Zau).
Como a nossa casa era a mais encostada à mata, decidiram que era o local mais estratégico para o fazer.
Assim, se a ideia fosse entrar por ali, estaria mais protegido não só o bairro dos militares, mas a própria aldeia.
Durante uma semana ou mais, o grupo do meu marido que era de operações especiais,
dormiu na minha varanda.
Delírios, porque se tivessem querido mesmo, as bazucadas cairiam lá e teríamos vindo todos «numa caixa de pinho». 
(Oiça esta canção do Zeca Afonso: clique no link)

Quis Deus que assim não fosse. 
Anotámos a boa vontade, o zelo e a dedicação, com que aqueles rapazes desempenharam aquela missão.
Foram operacionais, atentos e principalmente mostraram grande amizade.
Sempre com boa disposição, mesmo que, para isso, tivessem que ir buscar força onde não existia.
Mais uma vez para todos o meu grande apreço.
Vocês muito mais que eu, que nós, foram as vítimas.
Não tinham apoio familiar, não tinham onde encostar o ombro, andavam para ali sem saber porquê, nem para quê.
Quantos problemas emocionais, quanto desespero.
Nos últimos dias de Abril (de 1974), chegou uma notícia ouvida por um soldado na rádio (penso que Brazzavile), que nos deixou a todos incrédulos e numa grande expectativa.
Tinha havido em Portugal, um golpe militar.
A incógnita era: que golpe terá sido?
Um mês antes, aquando do 16 de Março, nós os dois estávamos em Portugal.
Só passados alguns dias, penso que a 26, soubemos oficialmente que tinha acontecido aquilo que há muito todos os democratas queriam: o 25 de Abril.
Uma revolução pacífica, com os militares à frente, depôs o governo instalado há quase cinquenta anos.
Apesar de haver alguns indícios, foi uma surpresa que nos deu uma alegria indescritível.
Acabou a guerra.
A partir dali foi a festa.
Se o interesse por aquela guerra era nenhum, a partir daí, foi a pressa de virmos juntar-nos à festa.
Faltava pouco.
Como o meu marido terminava a comissão em Agosto, decidimos que eu vinha em Julho e vim.
Ele demorou um pouco mais. Chegou em Outubro.
Entretanto foi a descompressão.
Iniciaram-se conversações com o MPLA para fazer a paz e nessas conversações havia oficiais de ambas as facções.
Lá foi sabido de fonte segura, que aquele batalhão, aquele grupo da fitinha branca, esteve sempre debaixo de mira mas foi sempre poupado.
Penso que houve abraços de ambos os lados, lágrimas de alegria e reconhecimento.
Pena que, por motivos óbvios, só se soubesse mesmo no fim!..
Todo o sistema nervoso e emocional, ficou para sempre afectado.
Para não falar do físico.
Os senhores da guerra ficaram muito mal, sentiram-se sem apoio, ficaram sem aquilo que mais gostavam de fazer: GUERRA.
Abraço.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Sustos dois












Alguns meses antes de acabar a minha missão de apoio no Buco Zau, o nosso vizinho do lado, também alferes miliciano, teve que fazer as malas e ir para o Leste de Angola. A casa foi imediatamente alugada a dois rapazes negros, que logo se soube serem militantes do MPLA.
Quais as intenções daqueles dois, e do seu movimento?
Ui! Que susto.
E agora?
Calma que eles gostam de nós, disseram-me logo.
Difícil de acreditar.
Tive medo, mesmo.
As casas eram geminadas, de madeira, era só um empurrão com os seus braços fortes e o pio acabava-se ali mesmo.
Meu Deus, como vou ficar aqui sozinha?
Foi uma expectativa demasiado incerta e insegura.
Vi-os pela primeira vez a entrar e cumprimentaram-me com um sorriso muito amistoso de quem quer mostrar que está por bem e em paz.
Não fiquei muito convencida.
A primeira vez que tive que ficar sozinha em casa, passei a noite em sobressalto a imaginar que, a qualquer hora, podia ser apanhada à mão.
Nunca aconteceu, porque na verdade estavam muito bem informados de quem eram aqueles milicianos e suas famílias.
Viemos a saber mais tarde que todas as nossas posições contra aquela guerra, os apoios dados à sua gente humilhada e sofrida – tudo foi tido em conta.
Daí os grupos de combate nunca terem sido bombardeados.
Devo dizer que o meu marido e o seu grupo usavam sempre na ponta da G-3 uma fita branca em sinal de paz.
Eram conhecidos por isso.
Começámos a viver lado a lado pacificamente, embora sem conversas.
Eram respeitadores e diplomatas, educadíssimos, sempre em silêncio, e com um olhar e um sorriso tranquilizadores, penso que se preocupavam em mostrar que não eram um perigo.
Acalmei um pouco.
Nos momentos calmos, era hora de nos juntarmos uns com os outros e de tentarmos descontrair um pouco.
Todos jovens, eram momentos de brincadeira, de gargalhada mas também as tais
longas conversas de qualidade elevada, de esclarecimento de várias matérias que me enriqueceram muito. Eram a compensação por aquele inferno.
Um dia, num domingo de manhã calmo, com os almoços no fogão, «caiu-nos tudo» ao ouvir um estrondo enorme vindo do quartel.
Alvoroço total.
Foi um ataque ao quartel (Bata Sano: ver foto).
E agora?
A primeira reacção:
– Embora daqui famílias. Vamos pedir um helicóptero para vos evacuar.
Contactos com o quartel.
Ninguém estava ferido, foram só estragos materiais.
– Acalmem-se, vamos analisar a situação.
Eles, os maridos tiveram que subir ao quartel e arriscar e sujeitarem-se a mais algumas «bazucadas» (linguagem militar).  
Nós, à espera na expectativa.
Eu só apanhei o porta-moedas e desliguei o fogão.
Fui ter com as minhas companheiras: sentia-me mais protegida.
No fim de longas conversações, a ordem foi:  
– Ninguém sai, foi só para assustar. Por algum motivo atacaram ao domingo, quando o quartel tinha menos gente.
Atingiram a vedação e uma parte do quartel onde só havia material.
Sorte, não terem atingido ninguém.
A versão para nós mulheres, era:
– Quiseram só dizer que estavam lá, mas a intenção não era fazer muitos estragos.
Apesar disso, foram dezoito granadas de morteiro que caíram lá dentro.
Como seria o futuro, na sequência daquele ataque?
Meu Deus, como é que um coração pode aguentar tanto!
Amanhã conto mais, estou cansada.
Um abraço.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Sustos












Foram vários.
Não estou a falar de osgas e baratas. Isso, no meio de tudo o resto, foi uma «gracinha».
Deixava o coração aos saltos, arrepiava, mas não punha a vida em risco.
Refiro-me às saídas do meu marido com o seu grupo para o mato.
Ao ataque ao quartel.
Às trovoadas.
Ao ter ficado sozinha e sem vizinhos, quando o colega do meu marido foi, castigado, para o leste.
Quando me dei conta de que para essa casa vazia entraram dois rapagões pretos, que iriam ser os meus próximos vizinhos (eram soldados do MPLA), soube logo.
Coração sofre!...
As saídas para o mato, eram sempre uma incógnita.
Fazíamo-nos fortes, mas a ansiedade instalava-se.
Tentava tudo para não pensar no pior.
Em casa eu via-os passar.
Lá ia a coluna com uma Berliet e três Unimogues carregados de jovens muito jovens, que não sabiam se voltavam.
Logo ali a três ou quatro quilómetros, espreitava o primeiro perigo.
A curva da morte (assim se chamava - ver foto) era famosa nas emboscadas.
Havia um morro, que era um sítio «estratégico e eficaz para matar».
Um dia antes de este batalhão chegar, tinham lá sido mortos dois militares.
Um bom presságio para quem chega!
Da minha casa eu, expectante a fazer de conta que era forte (ou inconsciente?), ouvia o fogo que o grupo do meu marido abria para, hipoteticamente, assustar se fosse possível.
A ansiedade era muita.
Até eles voltarem era um verdadeiro suplício.
Isto repetia-se mensalmente.
Era o reabastecimento.
O Congo era logo ali.
Nunca aconteceu nada, mas só soubemos isso no fim!...
Era uma tensão inevitável.
À chegada da missão, era a descompressão.
Com os vizinhos militares de carreira, a olhar e admirados, porque nunca tal tinham visto.
Ouviam dizer das suas mãezinhas tudo o que provavelmente nunca tinham ouvido.
Isto porque eram os únicos a quem interessava que aquela guerra continuasse e defendiam-na.
Eu limitava-me a tentar acalmar e a dar apoio.
Ele tinha razão.
Cada oito ou nove dias, eu ficava sozinha em casa.
Ao meu marido calhava a vez de dormir no quartel. Era durante vinte e quatro horas o oficial de dia.
Não foi assim tão mau, enquanto não chegou o tempo das chuvas com as trovoadas acopladas.
Depois, era de cortar a respiração.
Durante a noite, já a dormir, era brutalmente acordada com estrondos «nunca dantes» ouvidos.
Pelas frestas da madeira, entrava uma luz tão intensa, que o meu quarto ficava iluminado como se de luz eléctrica se tratasse.
Os raios caíam nas árvores (sorte a minha) que eram mesmo coladas à minha casa.
Ao outro dia, ao levantar-me, ia ver o que tinha acontecido.
As árvores, de grande porte como já aqui referi, estavam abertas pelas faíscas e com troncos queimados.
Houve noites em que julguei que ficava ali.
De manhã, agradecia a Deus por estar viva.
Amanhã há mais.
Abraço.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

A minha varanda












O meu tempo era passado na minha varanda de tipo colonial (mas em casa de madeira, não esquecer), com alpendre, telhado de zinco, e com umas grades de madeira.
Parecida com a da imagem, mas era grande e agradável.
Com uma torneira com mangueira instalada, fazia as minhas delícias.
Durante o dia, eram várias as vezes que passava por mim a água que saía quente, mas que aliviava um pouco o calor por curtos momentos.
De tantos banhos, fiz uma queda de cabelo, que me pôs em pânico. Só com tratamento o problema se resolveu.
Essa varanda foi a minha sala de visitas, de estar, de jantar e de lazer. Muito agradável mesmo.
Foi lá que tomei conhecimento da fome e das crianças com barrigas dilatadas com umbigos do tamanho de peras.
Foi lá que me dei conta do racismo profundo dos militares do quadro ao espantarem com raiva essas crianças como se fosse cães sarnentos.
Foi de lá que li nos olhos dos mesmos, o espanto e quase crítica, por verem que acolhemos em nossa casa, protegemos e sentámos à nossa mesa uma criança preta, depois de lhe proporcionar um banho e lhe vestir roupa limpa.
Foi naquela varanda que me senti muito bem, ao ver a alegria nos seus olhos, por se sentir protegido, e gente.
Foi naquela varanda que recebemos com todo o gosto e amizade quem quisesse aparecer para conversar e sentir um pouco de calor humano.
Foi lá que num dia de natal, recebemos o grupo de soldados, o grupo do meu marido, e ceámos todos. Não faltaram as nossas tradicionais filhós que foram feitas debaixo da ventoinha.
À falta de bacalhau e couves, comeu-se cabrito assado.
Esta guerra aguentou-se, porque houve todas estas cumplicidades e solidariedade.
Os mais martirizados foram sem dúvida os soldados.
Sozinhos, abandonados, sem rumo nem amparo.
Compreendi o porquê dos excessos, compreendi o desespero de alguns, as atitudes tresloucadas quando se sentiam perseguidos e castigados por dá cá aquela palha.
Foram os heróis deste massacre, e alguns tão desamparados ainda hoje.
Para todos a minha admiração.
Abraço.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Buco-Zau















Como referi no último texto, embora levando uma vida parada (o que, tenho de confessar, me fez mal em termos de saúde), o cérebro estava activo, necessitado de ocupação.
Daí eu passar a maior parte do tempo a ler.
A ler e a observar.
A intensificação da revolta cresceu ainda mais em mim.
Mais ainda tive mais a certeza de que aquela guerra era uma grande injustiça.
Só servia os «senhores da guerra» e as famílias que com eles privavam.
Os militares «do quadro», que faziam comissões atrás de comissões e se entretinham nas festanças no quartel, a beber e a jogar bridge, enquanto o pé-de-meia ia crescendo, crescendo.
Colonos e fazendeiros acompanhavam-nos.
Ao mesmo tempo, exploravam os pretos, coitados, que, embora com uma grande revolta interior, obedeciam e calavam a raiva.
Isto para poderem comer os restos e dar aos filhos como se de porcos se tratasse.
Parece linguagem dura, mas é verdadeira, infelizmente.
Os seus senhores, insensíveis e cruéis, fingiam que não viam.
A vidinha corria-lhes de vento em popa…
Quando este batalhão chegou, alguns de nós, mais revoltados, foram para lá decididos a protestar contra aquela injustiça e ganharam muitos para a causa.
Foi um protesto surdo, sem ruído.
A melhor táctica foi não alinhar em farras de famílias com as entidades locais mais gradas e os fazendeiros, que tinham até então os militares na mão.
Para quem sempre viveu da guerra e dos convívios, foi um choque.
Custou-lhes a aceitar.
Sentiram-se rejeitados e, como a inteligência estava adormecida, acho que nem perceberam o gesto.
Ao mesmo tempo, nos contactos diários, a relação dos militares com os indígenas, era como é evidente, de igual para igual.
Uma atitude que os deixou perplexos e com um brilho muito especial nos olhos.
Os que estavam mais próximos dos militares e suas famílias sentiram a cumplicidade. Isso transpareceu. Deixaram o olhar triste e começaram a sorrir.
Passaram palavra, olhavam-nos com muita simpatia e cumprimentavam.
Deixaram de se ver cenas tão tristes como aquela em que dois militares graduados tiveram que intervir fortemente.
O administrador local para se desresponsabilizar, perante os militares milicianos e famílias, esbofetear o «cipaio» já com muita idade («cipaio» era uma espécie de soldado civil de apoio  ao próprio administrador), acusando-o de ser o responsável pela falta de água.
Para «engraxar».
Devo dizer, que a água era, lá mais do que noutro sítio qualquer, um bem mais que necessário. Logo, era preciso não haver falhas nesse aspecto sobretudo.
Eram estes os donos daqueles países.
Muito mais haveria para dizer.
Como foi possível aguentar tanto?
Abraço

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Cabinda Quatro












Depois de finalmente instalada, chegou o momento de olhar para o lado.
A minha casa estava incrustada na floresta do Maiombe.
Nas traseiras, árvores de grande porte erguiam-se mostrando a sua pujança.
Algumas foram cortadas exactamente para poderem construir as quatro casas que faltavam para os militares acabados de chegar.
A pequena aldeia era habitada pela tropa, por dois comerciantes europeus, pelo
administrador de posto e outras autoridades locais e pelos indígenas.
Havia ainda uma fazenda (Fazenda Alzira), que era gerida por um fazendeiro-feitor, europeu também, que, por acaso, explorou duma forma desonesta todos aqueles que precisaram das casas que ele mesmo mandou construir e alugou, com rendas exorbitantes.
Devo dizer que as casas foram feitas com madeira verde, e que com o calor abriram tais frestas que se via a rua.
Isto levou a que eu fosse permanentemente presenteada com visitas variadas a qualquer hora do dia ou da noite.
Ele eram as baratas, ele eram as osgas, ele eram as formigas e até um ou outro morcego me entrava à noite pela casa dentro.
Habituei-me, depois de muitos sustos, a habitar naquele jardim zoológico mais ou menos rastejante.
Um colono oportunista, desonesto, que se aproveitou da situação.
Penso que o meu coração nunca mais se recompôs de tantos sustos.
O dia-a-dia era lento, escaldante e arrepiantemente silencioso.
O calor e a humidade pesavam tanto que quase me impediam de respirar.
Para uma pessoa habituada ao clima de Portugal, foi simplesmente insuportável.
Enquanto lá estive, limitei-me a fazer os mínimos. As refeições, sempre que necessário,
e no resto do tempo dormir, conversar e ler, ler, ler… Li tudo o que era possível.
Levámos muitos livros e trocávamos entre nós.
Havia sempre livros e pessoas em fila de espera.
Saía muito pouco de casa devido à canícula, mas como os bens alimentares era o meu marido que os trazia da cantina militar, limitava-me a comprar cá em baixo o pão e pouco mais.
Apesar de ter quem o fosse buscar, eu própria, de vez em quando, gostava de o fazer.
Foi aí, que me apercebi de como era diferenciado o atendimento aos brancos e aos pretos.
A casa estava sempre cheia com nativos que vinham das aldeias comprar o que necessitavam, mas, logo que um branco entrasse, tudo parava e passava à frente.
O coitado do preto já estava treinado, afastava-se sem que ninguém lhe dissesse nada.
Era uma subserviência constrangedora, humilhante mesmo.
No que a mim disse respeito, estabeleci logo ali uma regra: eu não queria tratamento preferencial, esperaria a minha vez, ainda que escorresse de suor.
Estupefacção geral, sobretudo do dono da loja.
Penso que foi inédito.
O preto era tratado como um ser sem préstimo, como um ser de terceira qualidade.
Tenho mais para contar.
Abraço.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Ainda Cabinda












Só passados alguns meses depois da minha chegada começaram a aparecer as companheiras dos outros militares (éramos cinco casais «milicianos»).
Nesses meses, eu e outra mulher de miliciano estivemos a viver em casas geminadas.
Já eu tinha a minha «recruta» quase feita, quando as outras, meio atordoadas, todas com crianças muito pequenas, aterraram no sítio que seria o menos propício ao crescimento e desenvolvimento de uma criança com dois, três anos.
Só a forte ligação aos maridos e um pouco de loucura de juventude, ajudou àquele gesto de amor.
Depois de instaladas era preciso que travássemos conhecimento.
Afinal, seríamos o apoio umas das outras nos próximos longos tempos.
Eles já eram um grupo muito coeso, foram para a guerra todos obrigados e contrariados.
Tiveram que se defender, unindo-se e fazendo uma barreira de aço, que dificilmente seria derrubada.
Então era do interesse de todos que essa barreira se reforçasse.
Foi engraçado, porque houve empatia geral entre nós e foi a partir daí que começou uma relação saudável, que nos preenchia o vazio e as saudades da família.  
Nos tempos livres deles e nossos, juntávamo-nos e o convívio era de descontracção, quantas vezes para esconder a raiva, as saudades, e a paragem forçada que resultaria no atraso nas vidas de cada um.
Todos alferes milicianos.
Ah, e um da malta que era capitão miliciano: o malogrado Felner da Costa.
Havia momentos altos.
Eram chamados à conversa assuntos muito ricos de conteúdo que eram verdadeiras aulas.
De política, de pedagogia, de sociologia, e de tudo o que cada um dominava.
Devo dizer que para mim foi uma lição de vida, foi quase um curso sem diploma, mas
assimilado, agradavelmente gravado e registado.
Obrigada, Nuno Miguel, médico psiquiatra que com a sua companheira Teresa Madureira (irónica, crítica observadora, e muito selectiva) foram uns professores com muita sabedoria, que me ensinaram muito do que hoje sei.
Ficarão comigo para sempre, amigos. Ainda que pouco nos vejamos, estamos aí.
Obrigada, Ferreira (médico) e Milú. Que apoio inicial.
Obrigada, Manuel Maia, pela alegria contagiante e disponibilidade permanente. Foste-me útil sempre que necessário e revelaste-te um amigo para o que desse e viesse.
Obrigada a todos pelas gargalhadas espontâneas e pelas tentativas de não esmorecer.
Onde estiveres, Costa, obrigada também por teres alinhado nas loucuras nocturnas das escapadelas com café quentinho, a sítios onde o teu amigo, meu marido, se encontrava com o seu grupo de combate impedido sequer de se mostrar.
Direi a todos que estão no meu coração e serão para sempre recordados com saudade.  
Obrigada, Caldeira, pela tua loucura. Diria que era a forma de te alienares, de mostrares a grande revolta que habitava em ti.
Não esquecerei o teu sorriso triste e o teu olhar revoltado.
Cabinda foi isto.
Foi revolta, foi experiência e aprendizagem permanente.
Voltarei.
Abraço

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Cabinda 3













Outubro de 1972. Lisboa/Luanda/Cabinda/Buco Zau – mata do Maiombe.
Devo dizer que fui das primeiras a chegar àquela terra «do nunca».
Fui recebida no quartel, onde me mimaram como nunca imaginei.
Desde o comandante de batalhão, aos oficiais, e todo o resto do pessoal, eram só atenções, simpatias e gentilezas.
Confesso que foi uma surpresa agradável e ajudou muito à minha integração.
O quartel ficava num morro, a mais ao menos três quilómetros da aldeia onde a nossa casa estava situada.
Para lá chegar, tinha que se subir uma picada íngreme, cheia de pedregulhos por todo o lado.
Os jipes bamboleavam-se para um lado e para o outro, como se fossem barcos nas vagas alterosas no mar alto. Era de cortar a respiração.
Enquanto estive sozinha, sem outras companheiras, sempre que podia, ia até lá. A messe era um lugar de convívio.
Jamais me esquecerei dos dois soldados que serviam lá. O Vale e o Moreira eram autênticos amigos. Sempre solícitos e prestáveis. Obrigada, amigos, para sempre. Vocês fazem parte da minha história de vida. Nunca vos esquecerei.
Há também dois motoristas que me marcaram e muito.
Pela simpatia, pela disponibilidade, e pela paciência que sempre mostraram.
Transportaram-me vezes sem conta. Com a sua malandrice natural, olhavam para a minha cara assustada, quando o jipe parecia que ia virar e aceleravam por ali acima
ainda mais. Eram seguros mesmo, eu é que não estava habituada, chegava lá em cima com o coração aos saltos, mas achava-lhes graça.
Onde estiverem, Russo e Boavida, para vocês o meu muito obrigada.
Depois, havia um grupo de oficiais, que foram para mim a família que lá não tinha.
Revelaram-se grandes amigos e protectores.
Um dia destes continuo. Recordar é bonito mas também cansa…
Abraço.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Tudo mal













Calma, que desta vez não é o país.
Desta vez fui eu que me portei menos bem.
Quase de forma irresponsável.
Diria mesmo que tenho mais obrigações.
Pronto.
Prevariquei.
Auto-mediquei-me.
O que aconteceu foi uma reacção fortíssima do meu organismo que me levou para a cama durante cinco dias, com náuseas e vómitos fortes e persistentes.
O medicamento que tomei foi-me recomendado na farmácia.
Acho agora, depois dos factos, que também de maneira pouco profissional.
Enfim!
«Erros meus, má fortuna…»
Falo disto para alertar, porque com as distracções da vida, nem sempre nos damos conta de que há medicamentos cujos componentes podem fazer faísca entre si.
Daí o facto de haver reacções negativas, que normalmente dão muito mau resultado.
Virei-me e revirei-me com frio, calor, suores e, para a cena ser completa, no fim de três dias, fui presenteada com uma obstipação intestinal como nunca tinha tido.
Foi dose!
Bom, mas já que mais não fosse, serviu para o futuro.
Stop.
Engolir medicamentos só quando houver certezas de que não há contra-indicações nem incompatibilidades ou sobrecargas com outros.
O serviço de saúde é complicado, é caro, mas há que ir atrás dele.
Evitam-se males maiores.
Passou.
Abraço.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Os donos das quintas e suas cabritinhas













Às vezes, vislumbramos que certas atitudes ou formas de estar na vida, podem dar uma imagem errada de pessoas e (ou) instituições.
Aí, na medida das nossas hipóteses e (ou) experiência de vida, procuramos com a frontalidade possível, dar um pequeno toque, ainda que saibamos que podemos aleijar um bocadinho.
«Outros valores mais altos se alevantam»!...
Contudo, na nossa ingenuidade, esquecemo-nos de que há pessoas, e sectores intocáveis, castradores e prepotentes.
Julgam-se munidos de poderes absolutos e autoritários.
Utilizam-nos para baralhar e dar de novo, são donos e senhores de quintas e cabritinhas que lhes pertencem e que manobram a seu bel-prazer.
Que os veneram e lambuzam, de graxa já em desuso.
Neste país minúsculo, é pena que ainda haja feudos envolvidos em odores de inquisição.
Tudo seria diferente se houvesse mais humildade, para reflectir no que nos põem à frente dos olhos.
É pena.
Não é por isso que a liberdade de expressão vai deixar de ser linda.
Abraço.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Dois anos















Como já aqui escrevi, a minha chegada a Cabinda foi uma decepção.
Contudo, o que descrevi foi apenas uma ponta do enorme fio, que foi aquela experiência.
À chegada, fomos precariamente instalados numa das casas de madeira que foram feitas de propósito para os militares daquele batalhão que optassem por ter a família com eles. 
Ainda mal refeita da mudança radical que se tinha operado na minha vida, deparei-me com uma situação no mínimo caricata.
A casa tinha dentro, apenas, uma cama de casal.
Os móveis, que também foram feitos por encomenda, também não estavam prontos.
O trabalho artesanal foi chegando com alguma lentidão.
Achei graça.
A matéria-prima de que foram feitos era exactamente extraída das grandiosas árvores da floresta do Maiombe, minha vizinha: o mogno.
Quase tudo era feito de uma só tábua.
Madeira virgem, sem qualquer espécie de tratamento.
Era bonita, assim ao natural. Limitei-me apenas a pedir que lhe dessem uma camada de cera clara.
Umas cadeiras de praia, uma estante com tábuas e tijolos, uma mesa mais ou menos grande, uns almofadões de tecido local (fiote, na linguagem indígena), e umas cobertas feitos do mesmo, com uma manta no chão… fizeram da minha casa um «chalé» que provocava a cobiça de todos, incluindo o comandante do batalhão, que nos visitou um dia de surpresa para verificar «in loco», pois já lhe tinha constado.
Acho que era da solidão. Ele não tinha lá ninguém de família. Também precisaria de sentir um ambiente caseuiro e com o conforto possível.
Na nossa casa, o resto que era necessário foi-se adquirindo aos poucos à medida do possível.
Entretanto, valia-nos o apoio que vinha do quartel. A messe era a salvação.
Com a passagem do tempo, fui-me convencendo de que aquele sítio no meio do mato, seria a minha morada nos dois anos seguintes.
Buco Zau era o nome daquele sítio onde só havia indígenas e tropa. Berliets, jipes e unimogs.
Nós achávamos que era uma terra de muito calor e muita humidade: na época mais quente do ano, 50º de calor e 70 a 80% de humidade no ar.
O movimento na rua, para lá das passagens da tropa, era de pessoas locais, sempre embrulhadas em mantas (tinham sempre frio, julgo que por causa daquela humidade extrema), carregando os filhos às costas, ou com molhos de lenha para se aquecerem e fazerem a comida.
E havia os fazendeiros... que até esta altura eram os donos não só da terra e das gentes como também da tropa. 
O sol nascia por volta das quatro da manhã e as noites começavam às dezasseis.
Logo no início – foi uma coisa que me marcou, para lá do calor pegajoso, também estas diferenças me perturbaram –, comecei a ter perturbações a nível de sono, só com ajuda de um comprimido fui suportando toda aquela mudança.
Um objectivo único, me mantinha: apoiar quem estava todos os dias a correr riscos.
Um dia destes conto mais.
Abraço.