segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Extractos de uma vida






















Uma pessoa que, como eu, viveu trinta e tal anos rodeada de crianças, tem sempre um sem número de estórias engraçadas para contar.
Tenho muitas.
Só por comodismo não vou ao «sótão» buscá-las e descrevê-las.
Hoje lembrei-me de uma que me vem à memória muitas vezes, pela força que teve.

Carlos era o nome da criança.

No seio familiar chamavam-lhe Càquinha.
Era de cor preta.
Três anos grandes.
Antes de entrar para o infantário, a sua vida – se é que se pode chamar vida àquilo – era passada na rua, num bairro degradado da Damaia.
No inverno, semi-nu, brincava na lama, que dava até meio da pernita magra.
A completar o cenário um permanente ranho grosso sempre a correr.
No verão a lama era substituída por um sol tórrido.
Pele ressequida e sempre com feridas.
Tinha um olhar perdido.
E muitos gestos de revolta.
Ao entrar no infantário foi um choque.
Não estava habituado a regras.
Nem sociais nem de higiene nem nada.

Calhou-me em sorte.
Foi um osso muito duro de roer.
Já estava habituada a outros casos igualmente difíceis.
Encarei o facto com um desafio difícil, mas que teve resultados compensadores.
Pus-me à prova.
Peguei nele com vontade e muita paciência.
Penso que me posso orgulhar de lhe ter sido útil.
Continuava quase sem roupa, ainda que o frio gelasse.
No primeiro inverno que se seguiu à sua entrada, não aguentei vê-lo assim e decidi arranjar-lhe algumas roupas.
Aceitou-as com relutância.
A sua pele não estava habituada.
A pior reacção foi quando tentei vestir-lhe a camisola de lã grossa, que fiz de propósito para ele!
Com fio duplo.

Logo que lha enfiei, a gritaria pôs o infantário em alerta geral.
«Mejola não, Duche. Mejola não!...»
(Camisola não, Dulce!...).

Com muita pena minha, não insisti.
Entendi-o.
Estava habituado a andar solto e aquela coisa grossa prendia-o.
Tirava-lhe a liberdade a que estava habituado.
Foi um episódio marcante, mas revelador.
Já bastavam as regras a que foi submetido.

Fiquei com a camisola na mão meio desconsolada.
Foi usada por um filho de uma colega minha.

Este caso ficou para a história do infantário.

Deixou-me a pensar.
A partir desse dia, dei ainda mais atenção ao «Càquinha».
Foi um trabalho árduo, mas valeu bem a pena. 

Abraço.

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