terça-feira, 28 de junho de 2011

O meu tio Narciso















É este o tio a quem me referi, no meu texto anterior.
Era um tio especial.
Um tio rebelde, boémio, mas um tio ao mesmo tempo engraçado e de uma utilidade sem par, para todos os que viviam naquela aldeia pacata e arredores deste canto da Cova da Beira.
Para lá dos copos que adorava, e do jogo da sueca em que era perito, exerceu sempre a profissão de barbeiro.
Em paralelo, praticava com mestria «medicina» sempre que era solicitado.
E como era solicitado!...
Não tinha qualquer preparação para o fazer, mas a verdade é que se mostrou um expert na matéria.
Não só as pessoas da aldeia o «consultavam», mas toda agente das redondezas recorria ao seu saber.
Logo de manhã, ou até altas horas da noite, lá se levantava ele, às vezes acabado de deitar, outras ainda nem sequer se tinha deitado.
Nunca se negou a cumprir «o seu dever». Fosse doença geral ou dor de dentes, ajudava a todos.
Não cobrava nada a ninguém, agradeciam-lhe com géneros.
Era um tio disponível e parecia que nascera para cumprir aquela missão.
Ajudar os desfavorecidos principalmente.
Deslocava-se a pé às aldeias vizinhas, e andava quilómetros sem se cansar.
Bastava um telefonema par o comércio mais conhecido.
«Receitava» os medicamentos num bocadito de papel já amarfalhado apanhado ali em qualquer sítio.
Acompanhava os doentes ao médico.
Mas havia um que até dizia: «Vão ao Narciso».
Nas farmácias ali à volta conheciam a letra dele e as «receitas» e aviavam os medicamentos sem hesitar.
Chegava a casa muitas vezes bebido, mas contente pelo «dever» cumprido.
Comia a correr, não sem antes perguntar à minha tia ainda ao fundo das escadas: «Ó Zabeli! O que é que se come»?
Se a ementa não lhe agradava, dizia: «Come-o tu» - isto com sotaque de Alfaiates (na raia de Espanha), que nunca perdeu...
Mas nada de agressividade, era um parodiante.
Comia e lá ia ele para o grupo da sueca, onde ficava horas sem fim.
Diziam que era um malabarista, de vez em quando já o apanhavam a fazer «renúncias».
Levava o jogo muito a sério e zangava-se quando a coisa não corria como ele achava que era correcta.
Adoeceu.
Nem por isso deixou de ser útil.
O copito ficou para trás.
Notavam-se-lhe, nos olhitos já pequenos, a tristeza e a saudade do que passara.
Os cuidados e o mimo – não eram o suficiente.
Ele estava talhado para servir os outros e viver a vida.
Ainda que às vezes não fosse da maneira mais convencional.
Quando ele faltou, toda a gente sentiu muito a sua falta.

Eu, quando era pequena, tinha-lhe um medo de morrer.
Era ele que me dava as injecções quando tinha anginas.
Mais tarde gostei muito dele. Para lá de me divertir imenso, fornecia-me toda a literatura que me estava vedada.
Era um homem que lia.
Não só o Prontuário Terapêutico (na altura com outro nome que não lembro), sempre ao alcance da mão para tirar qualquer dúvida - mas toda a literatura dos clássicos.   

Onde estiveres, tio Narciso, «João Semana» da minha aldeia e arredores, a minha amizade.

Abraço.

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