segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Reflexão










Sei que este assunto poderá estar um pouco fora do contexto habitual do dia-a-dia de muita gente, mas às vezes é preciso ter contacto com outras realidades, parar um pouco para pensar.  
A propósito de uma observação diária, ao vivo e em directo, dei comigo a pensar em como a vida é injusta, às vezes até agressiva, para a maior parte das mulheres. Apesar da igualdade de direitos já adquirida, a mulher continua a ser aquela que, salvo excepções, sente na pele o maior peso no seu dia-a-dia. E quando digo «peso», quero dizer também, peso físico. Para lá da sua actividade profissional que é normalmente exigente, ela corre para casa onde a espera a tarefa imensa de dona de casa, mãe e educadora. Ela corre para o infantário onde deixa o filho apressadamente, sem tempo sequer para se despedir com calma e tempo, para que ele fique tranquilo e estável. Corre para o emprego onde a maior parte das vezes é explorada e mal paga, corre para as compras onde tem que se controlar para não desequilibrar o orçamento. Corre, corre, para que nada falte. No fim do dia, exausta, ainda tem que ter um sorriso para o marido, disponibilidade para as crianças e, já a cair para o lado, contar com a ternura possível a historinha da praxe quando vão dormir. Ao homem, educado ainda segundo a mentalidade arcaica dum passado já distante, resta-lhe receber das mãos da mulher as refeições a horas, a roupa lavada e passada a ferro, e claro, se for possível não dar sinal de cansaço. Não quero com isto dizer que não haja excepções, mas ainda não é assumida a colaboração normal e sem diferenças. Às vezes, ele faz o favor de pôr a mesa, sacudir a toalha e sente o dever cumprido. Talvez a alguns esta minha pequena reflexão pareça demasiado radical, mas a verdade é que esta realidade existe, a mulher continua a ter um papel de exigência, que a obriga a uma sobrecarga e a impede de olhar para si própria, esquece-se de que existe, cai no desleixo, perde a auto-estima.
Era tempo de mudar mentalidades, para bem de todos. A propósito, veio-me à memória um poeta que marcou a minha juventude: António Gedeão. Para além de outros igualmente significativos, ele deixou um poema muito forte, que descreve na perfeição este tema. Chama-se «Calçada de Carriche» e refere estas questões:

«(…) Anda, Luísa, / Luísa, sobe, / sobe que sobe, / sobe a calçada. / Chegou a casa / não disse nada. / Pegou na filha, / deu-lhe a mamada; / bebeu a sopa / numa golada; / lavou a loiça, / varreu a escada; / deu jeito à casa / desarranjada; / coseu a roupa / já remendada; / despiu-se à pressa, / desinteressada; / caiu na cama / de uma assentada; / chegou o homem, / viu-a deitada; / serviu-se dela, / não deu por nada. / Anda, Luísa. / Luísa, sobe, / sobe que sobe, / sobe a calçada. / Na manhã débil, / sem alvorada, / salta da cama, / desembestada; / puxa da filha, / dá-lhe a mamada; (…) salta para a rua, / corre açodada, / galga o passeio, / desce o passeio, / desce a calçada, / chega à oficina / à hora marcada, / puxa que puxa, / larga que larga, / puxa que puxa, (…)»

3 comentários:

  1. Parabéns pelo novo espaço criativo que acabou de nascer!
    Oxalá as palavras proliferem pelo espaço da memória e tragam até nós, registos escritos, sonoridades e sensações olfativas de outros tempos, mas também do presente.
    Será certamente, para nós leitores, um regular e feliz encontro que não deixaremos voar no tempo, sem manifestarmos o nosso desejo de continuidade.
    ONTEM foi passado; HOJE é presente e futuro!

    Joaquim Gouveia

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  2. Se o autor do antecedente comentario não se importar e me permitir, eu gostaria de assinar por baixo, pois está lá tudo dito, e eu não sei dizer ou escrever melhor!
    Parabens por teres dado o passo em frente pois vai-se ajudar em tão má fase que atravessas.
    Boas Festas

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  3. Meu caro António!
    Está tudo melhor.
    Ou melhor: já está tudo bem.
    Porque, felizmente, há óptimos médicos e enfermeiros...
    Desculpa não te ter informado mais cedo, mas a velocidade da vida é assim...
    Agradecemos-te a preocupação.
    Boas Festas tb para vocês!

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