sábado, 23 de abril de 2011

A menina mulher











Era uma vez uma menina a quem deram tudo.
Até aos catorze anos nada nem ninguém lhe faltou.
Era feliz e adorava a vida que lhe proporcionaram.

Um dia, os pais saíram de madrugada para o negócio de família.
Disseram-lhe: «até logo», e ela continuou o seu sono tranquilo na sua cama confortável.
«Até logo», disse meio a dormir.
O dia passou, ela esperou, e o carro que lhe deveria trazer os pais tardava.
Esperou, esperou, e quase desesperou.
Era alta noite e ela sozinha, sem qualquer notícia.
Chamou uma amiga para partilhar com ela a angústia, e com ela passar a noite que não terminava.
Passou.
Numa aflição de morrer.
É claro que não dormiu.
É claro que sentiu que alguma coisa não estava a ser normal.
O telefone tocou às oito da manhã.
Correu a atender tremendo.
A notícia caiu que nem uma bomba.
«O teu pai sofreu um enfarte e teve que ir para Lisboa para o hospital».
(Estavam em Castelo Branco).
«A tua mãe foi com ele, é coisa grave.»
Assim, a seco.
Ao telefone.
Sem calor por perto.
Uma crueldade desumana.
E eram só seis quilómetros.
E tinha carro, aquele senhor casado com uma sua prima direita.
A menina ficou sem chão.
Aquela que até aí tinha sido menina mesmo, de repente limpou as lágrimas e fez-se mulher.
Assim, de repente sem transições, abruptamente.
Um abanão brutal que lhe abalou todas as suas estruturas ainda em construção.
Um verdadeiro tsunami atingiu todo o seu ser psicológico.
Coisa séria.
Deixou marcas, grandes, invisíveis mas profundas.
Sozinha, entregou-se da casa.
Decidiu de repente que iria ser forte e fez-se mulher.
Tinham ficado no curral três porcos grandes.
Era preciso cuidar deles.
Um tio amigo apanhava a comida e entregava-lha em casa, ela fazia o resto.
Sem experiência, sem prática, aprendeu depressa a lição que os tios lhe deram.
Cuidou de tudo como se estivesse habituada.
Tratou da casa, com empenho e brio.
Parecia uma mulher experiente.
Passou um mês quase sem notícias.
Os telefones não abundavam.
Foi para aquela menina uma tarefa longa e gigantesca.
Desempenhou-a com orgulho e brio.
Os pais regressaram, apareceram à meia-noite.
Não os esperava.
Quase lhe saltou o coração.
O pai regressou de ambulância.
A mãe acompanhou-o numa tristeza.
Tudo mudou.
Um mundo novo à sua frente e sem regresso aparente.
Incapacitado para o trabalho, foi o início do fim.
Outro enfarte levou-o para sempre, no fim de dois anos difíceis.
A menina nunca mais pôde ser como era antes.
Agarrou-se á vida para poder sobreviver junto com a mãe jovem, de quarenta e seis anos.
O pai foi-se aos quarenta e oito.
Os dias felizes fizeram-se noites escuras.
A alegria foi interrompida e nunca mais foi como era.
No seu lugar estava um peso imenso que demorou a desvanecer-se.
Foi neste cenário que acabou o seu crescimento, e formou a sua personalidade.
Toda a gente gostava muito dela, à distância.
Muito poucos lhe puderam ser úteis.
Só alguns, que guardará para sempre no seu coração magoado.
Quem se atreverá ainda a incomodar o sossego desta menina velha guerreira?
Só alguém insensível, e que nunca quis tomar conhecimento sério.
Insensibilidade? Desprendimento? Sadismo?

Abraço.

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